Instituto Brasileiro de Pesquisas Arqueológicas
Profa. Colaboradora do PPG em Arqueologia, Museu Nacional, UFRJ
PAULO SEDA
LEPAma – Lab. de Est. E Pesq. da América Antiga/NUCLEAS – Núcleo de Estudos das Américas, UERJ
Instituto Brasileiro de Pesquisas Arqueológicas
A
Tradição Una (Sudeste do Brasil) parece ser originária da região amazônica e
expandiu-se para o sudeste a partir do noroeste de Minas Gerais, passando pelo
norte de São Paulo, pela Serra Fluminense, Baixada de Campos e litoral do Rio
de Janeiro, atingindo por fim o Estado do Espírito Santo (SEDA, 2002).[1]
Tais grupos humanos ocuparam não apenas grutas em Minas Gerais e na Serra
Fluminense como também locais a céu aberto. Sua cerâmica está representada em
sua maioria por vasilhames pequenos de forma arredondada (as mais antigas
lembram a forma das cabaças), a exceção das urnas funerárias, e é considerada
tecnologicamente bem feita. Há ainda ocorrência de material lítico lascado,
polido e picoteado, variados adornos encontrados junto aos enterramentos e, nos
sítios com melhor preservação, farto material têxtil e vegetal.
No
Rio de Janeiro, o sítio arqueológico que mais se destaca é o sítio do Caju.
Situa-se no perímetro urbano do Município de Campos dos Goitacazes, à margem
direita do rio Paraíba do Sul, dentro de uma propriedade particular. Foi
descoberto durante o Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas (PRONAPA), e
é um dos mais antigos da Tradição no Rio de Janeiro (1453
± 65 AP (SI-705) a 790 ± 140 AP (Beta 40595)).[2] As
primeiras escavações sistemáticas foram realizadas em 1988 sob a coordenação de
Ondemar Dias Jr e Eliana Teixeira de Carvalho, com patrocínio da Prefeitura
Municipal de Campos, Latin American Archaeological Fund, da Smithsonian
Institution e aval do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional -
IPHAN) (Foto 1).
No
Sítio do Caju foram identificados dois ritos funerários, a saber: em urnas (16
enterramentos), predominantemente primários e de crianças entre 0-10 anos e em
covas (08 enterramentos), primários, de adultos recobertos por vasilhames de
cerâmica inteiros e fragmentados (Foto 2). Houve, no entanto, uma ocorrência
atípica (01 enterramento) em cova simples sem cerâmica e com forma distinta de
deposição. De um total de vinte e cinco (25) enterramentos, foram identificados
vinte e sete (27) indivíduos, dos quais seis (06) eram adultos, três (03) do
sexo feminino e três (03) do masculino, e vinte e um (21) de sexo indeterminado
por se tratarem de crianças.
Embora
a grande maioria dos enterramentos do sítio do Caju apresentasse muitos adornos
funerários (como: pendentes de conchas; colares de contas de ossos e dentes de
animais; cachimbos e vasilhames de cerâmica) e as estruturas funerárias
estivessem em boas condições de preservação, mostra-se muito arriscado a
realização de qualquer análise de gênero, uma vez que a amostragem de
indivíduos adultos é muito pequena. No entanto, trabalhos sobre os rituais
funerários e aspectos bioesqueletais dessa população são perfeitamente viáveis,
como os que já foram realizados por MACHADO, 1994; MACHADO, SENE, SILVA, 1994,
1991.
Em
Minas Gerais, encontra-se o sítio arqueológico Gruta do Gentio II, que se
mostra o mais completo e mais importante da Tradição Una.
A
Gruta do Gentio II (MG-RP-6) foi descoberta em 1973, durante as prospecções do
PROPEVALE – Programa de Pesquisas Arqueológicas no Vale do São Francisco,
desenvolvido pelo IAB – Instituto de Arqueologia Brasileira, quando as
pesquisas atingiram o Município de Unaí. Durante esta etapa do Programa, o
sítio foi um dos que mais se destacou devido à ocorrência de artefatos de
cabaça, cestaria, fibras vegetais, cerâmica e lítico, logo nos primeiros níveis
deposicionais.
Segundo
DIAS JR. (1976-7, 1991, 1992), a Gruta, localizada na fazenda Vargem Bonita,
município de Unaí, noroeste do Estado de Minas Gerais, possui 200m2
de área interna e situa-se num paredão calcário com cerca de 2,5 Km de extensão, no qual
há outras inúmeras grutas e abrigos, algumas delas com evidências arqueológicas
e todas voltadas para oeste. O córrego mais próximo é o Canabrava, que dista
cerca de 500 m
do sítio.
Após
a sondagem inicial em 1973, quando foi descoberto, o sítio passou por quatro
etapas de escavação (1976, 1977, 1984, 1987), durante as quais foram decapados
cerca de 140m2 e identificando-se quatro camadas ocupacionais (Foto
3).
A
composição estratigráfica foi estruturada da seguinte forma:
CAMADA
I - coloração variando da cinzenta ao marrom avermelhado próximo à sua base.
Friável e homogênea. Presente em toda a área central, atingindo 140 cm junto à boca,
adelgaçando-se para o interior. É a mais abundante em vestígios culturais e
para ela foram obtidas oito datações, que a colocam entre 410 ± 60
AP (SI 2836) e 3.490 ± 120 AP (SI 2373), sendo seis delas com idade superior a
mil anos.
CAMADA
II - predomina a coloração avermelhada com lentes espessas de coloração
esbranquiçada nas extremidades superior e inferior. Menos friável que a camada
anterior, com áreas mais compactadas. Foram obtidas quatro datações que a
situam entre 7.295 ±
150 AP (SI 2372) e 8.125 ± 120 AP (SI 2373), as demais com mais de oito mil anos;
CAMADA
III - coloração avermelhada com intromissões de pequenas lentes esbranquiçadas
e de carvão. Fortemente compactada, está restrita à área mais interna do sítio,
onde atingiu 40 cm
de espessura. Cinco datações inserem-se entre 8.595 ± 215 AP (SI 5077) e 9.040 ± 70
AP (BETA 3520), sendo as demais intermediárias;
CAMADA
IV - coloração marrom escura, bastante compacta, com espessura ao redor de 10 cm . Foi datada em 10.190 ± 120
AP (SI 6837).
De
acordo com BIRD, DIAS JR, CARVALHO (1991, p.17), ocorreram no local dois
horizontes culturais e cronológicos bem definidos. O primeiro, mais recente,
compreendendo a Camada I, relaciona-se a uma ocupação de horticultores
ceramistas, vinculada à Fase Unaí, cujas características gerais se enquadram
nos padrões da Tradição Una, composta de vestígios complexos de cestaria,
fiação e tecelagem, utensílios e implementos de materiais variados, como osso,
cabaça, couro e madeira, adornos de plumária, conchas, ossos e lítico,
cerâmica, artefatos de pedra, além de um grande número de enterramentos,
diversos parcialmente mumificados (cf. MACHADO, 1992) e muitos coprólitos (cf.
MACHADO et alii, 1981/2).[3] O
segundo, mais antigo, compreendendo às demais camadas habitacionais (II à IV),
corresponde a ocupações de caçadores-coletores onde há predominância de
implementos líticos, muitas fogueiras, restos alimentares e ocorrência de
vários enterramentos.
Entre
estes dois horizontes, ocorreu um período de abandono do sítio, enfatizado pela
ausência de carvões para datação e de vestígios de ocupação humana,
correspondendo a um lapso de tempo de cerca de 3.500 anos.
Na
gruta existem também sinalações rupestres, merecendo destaque o fato de que
após as decapagens das camadas arqueológicas foram encontrados pingos de tinta
vermelha na base rochosa do sítio (cf. DIAS JR, 1991, 1993, SEDA, 1981/2,
1998).
Em
relação aos remanescentes ósseos humanos, no horizonte caçador-coletor foram
encontrados vinte e seis (26) enterramentos e um total de trinta e oito (38)
indivíduos. Destes, sete (7) foram identificados como sendo do sexo masculino,
quatro (4) femininos e vinte e sete (27) indeterminados dos quais treze (13)
eram crianças. Já no horizonte horticultor, foram evidenciados sessenta e nove
(69) enterramentos, constituídos de cento e trinta e oito (138) indivíduos.
Quanto ao sexo, foram identificados vinte e nove (29) indivíduos masculinos,
vinte e seis (26) femininos e oitenta e três (83) indeterminados, dos quais a
maioria crianças e adolescentes cujo sexo não é metodologicamente passível de
determinação[4].
Para
o estudo de gênero, o horizonte horticultor se mostra o mais adequado, pois
apresenta uma boa amostragem de indivíduos do sexo masculino e feminino e
possui um amplo e variado acervo de materiais culturais associados, o que não
ocorre no horizonte caçador-coletor. Ademais, a partir de um estudo mais
completo dos rituais funerários (SENE, 1998), observamos que houve um
tratamento diferenciado dos indivíduos femininos em relação aos masculinos,
especialmente através das variáveis de tratamento dado ao corpo, acompanhamento
funerário e distribuição espacial dentro da gruta, dentre outras.
Entre os horticultores, o enterramento
primário - um tipo de tratamento dado ao corpo após a morte do indivíduo - foi
preferencialmente destinado às mulheres, embora haja homens, em menor número
que receberam tal cuidado. Destacamos duas ocorrências que parecem expressar
significados diferenciados: trata-se dos enterramentos de dois indivíduos
femininos (nos 4 e 12), os únicos idosos de todo sítio, que
apresentaram farto e diferenciado acompanhamento funerário, tendo sido
cuidadosamente depositados na área mais interna da gruta, suscitando
possivelmente um desejo do grupo de protegê-los. O enterramento 4 teve a idade
diagnosticada entre 60 e 70 anos, enquanto o 12, em mais de 50 anos. Este
último destaca-se ainda mais por apresentar uma grande enxó fragmentada -
instrumento para desbastar madeira - junto ao corpo, que poderia ter sido de
uso próprio ou de um parente próximo, podendo ser a fragmentação decorrente da
utilização exacerbada ou intencional, significando o fim da vida (cf. UCKO,
1969) (Foto 4).
Destacam-se
certos acompanhamentos funerários dentre eles: os esqueletos de dois pequenos
animais sobre os pés, sendo um de ave, o qual poderia ser um animal de
estimação; alguns sabugos de milho e uma cabaça, podendo ser evidências
materiais relacionados com a preocupação em alimentar o morto durante sua
passagem para outra vida; além de pendentes e adornos atípicos, que se
sobressaíram pela quantidade, qualidade e variedade. Autores como RODRIGUES (1983)
e UCKO (op. cit.), entre outros, têm apresentado exemplos etnográficos que
demonstram estas interpretações simbólicas.
Quanto
à valorização do idoso, parece estar evidente sua importância para a comunidade
(ressaltando-se a idade avançada para os padrões de então), já que 100% deles
tiveram tratamento diferenciado não só no que se refere à idade, mas também por
serem indivíduos femininos. No Vietnam, por exemplo, o status do ancião é muito valorizado e o respeito que lhe é
conferido durante sua vida deve continuar após sua morte, quando ele se
transformará em ancestral a ser cultuado (RODRIGUES, op. cit.). Entre os grupos
tribais brasileiros, aos idosos é destinado um maior respeito e,
conseqüentemente, um maior “poder” frente à comunidade, devido à sabedoria que
encerram (RIBEIRO, 1987, MELATTI, 1987). Evidentemente, pelas circunstâncias
contextuais desses dois casos no horizonte horticultor do sítio, acredita-se na
intencionalidade inexorável desses rituais funerários.
Ainda
no que se refere ao tratamento do corpo no horizonte horticultor, percebe-se
que, se por um lado, os enterramentos femininos do tipo primário foram em maior
número, por outro, os do tipo secundário apresentaram um percentual maior de
masculinos, demonstrando, pois, uma diferenciação do tipo de tratamento dado a
sexos distintos. Embora haja discordância de alguns autores, no sentido de
acreditarem que a distinção social em vida seja ela sexual e/ou etária, possa
ser ou não necessariamente reiterada por ocasião da morte, indagamos até que
ponto o status muda com a morte do
indivíduo ou mesmo é omitido. Assim, se um membro do grupo ocupa uma posição de
destaque frente à comunidade, é provável que isto fosse expresso no seu ritual
funerário e arqueologicamente identificado através da combinação de uma série
de variáveis e de observações contextuais. Como enfatizou BINFORD (1972),
quanto maior a importância do indivíduo, maior será o envolvimento da
comunidade e maior o dispêndio de energia na realização da cerimônia mortuária,
o que parece ter sido o caso dos enterramentos citados.
No
horizonte horticultor, os acompanhamentos funerários apresentaram-se de forma
mais elaborada e em maior quantidade e variedade junto aos enterramentos
femininos, muitos constituindo peças únicas. Sendo assim, merece destaque
também o enterramento 11, que a priori
se destaca pela quantidade, qualidade e variedade de acompanhamentos funerários
(5823 contas de sementes, um pendente de osso de crânio de peixe, cento e vinte
e uma contas discoidais de conchas, tecidos, um pendente lítico fusiforme,
etc), muitos dos quais são ocorrências únicas entre os enterramentos em geral
ou mesmo entre os indivíduos femininos.
A
presença de muitos vestígios de alimentos, por exemplo, depositados
intencionalmente junto aos enterramentos do horizonte horticultor expressa
significados importantes: por um lado, a grande quantidade de alimentos
cultivados (milho, amendoim) encontrados reafirma que as estratégias de
subsistência (subsistema econômico) dessa população tinham se modificado em
relação às do horizonte anterior e se tornaram possivelmente à base de sua
economia; por outro, a presença de espigas de milho ou de suas sementes sem o
sabugo, de amendoim e de cabaças, possíveis recipientes, junto aos indivíduos
4, 9, 10, 12, 16, 18, 28, entre outros, pode assinalar a preocupação da
comunidade no sentido de suprir o morto com alimentos para sua longa jornada
até a outra vida (cf. RODRIGUES, op. cit., UCKO, op. cit.) ou demonstra a
importância do cultivo de alimentos àquela comunidade, cujos exemplares devem
acompanhar o indivíduo mesmo depois da sua morte.
Quanto
ao local de deposição dos enterramentos no horizonte horticultor, observou-se a
recorrência dos mais importantes, tais como o 4, o 10 e o 12, depositados no
fundo da Gruta, reafirmando-se possivelmente a idéia de maior proteção. A
grande maioria, no entanto, está na área intermediária cuja localização
protegeria a todos da ação da chuva, do sol, do vento e dos animais.
Contudo,
uma série de análises biológicas e químicas fundamentais para o estudo de
gênero no Sítio Gruta do Gentio II ainda está por ser realizada, tais como Harris lines, dosagens de cálcio, zinco,
estrôncio, carbono, nitrogênio e análise dentária para avaliação nutricional,
dentre outras. Desta forma, somente a compilação final de todos os dados
decorrentes destas análises com aquelas de procedência arqueológica
relacionadas aos indivíduos masculinos e femininos poderão fornecer informações
confiáveis sobre gênero e conseqüentemente sobre desigualdade social na
pré-história brasileira. Alguns indícios desta regularidade já foram detectados
através do estudo dos rituais funerários.
[2]
AP, antes do presente ou anos decorridos, contando-se, por convenção, a partir
de 1950.
[3] Cf. CHMYZ et alii, 1976. “Fase
- Qualquer complexo de cerâmica, lítico, padrões de habitação, etc.,
relacionado no tempo e no espaço, num ou mais sítios.”
[4] Para
maiores informações mais detalhadas sobre os rituais funerários dos grupos
caçadores-coletores e horticultores da Gruta do Gentio II ver SENE (1998),
Dissertação de Mestrado.
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