Instituto Brasileiro de Pesquisas Arqueológicas
Profa. Colaboradora do PPG em Arqueologia, Museu Nacional, UFRJ
PAULO SEDA
LEPAma – Lab. de Est. E Pesq. da América Antiga/NUCLEAS – Núcleo de Estudos das Américas, UERJ
Instituto Brasileiro de Pesquisas Arqueológicas
2. Arqueologia de Gênero
Algumas
teorias assinalam que tanto o sexo quanto o gênero não existem fora da
cultura...e que ademais eles só são capazes de existir através de sua constante
repetição em atos e símbolos. O gênero é, então, não um fato ou uma essência,
mas um conjunto de atos que produz o efeito ou a aparência de uma substância
coerente. O gênero não é incorporado, mas repetidamente representado
(ELLER, 2000, p.75).
A
pioneira a realizar trabalhos sobre gênero, especificamente sobre importância
da mulher na pré-história, foi Marija Gimbutas cuja pesquisa na região dos
Balcãs a levou a criar a idéia de uma Europa Antiga tendo como base uma figura
feminina. Mesmo tendo tecido considerações de uma maneira unilateral e sendo
atualmente criticada, ocupa um lugar importante na vanguarda desses estudos.
Posteriormente,
na década de 80, alguns artigos foram publicados sobre a análise de gênero na
pré-história como os de Margareth Conkey e Janet Spector, mas as questões por
elas levantadas só foram amplamente valorizadas e discutidas na década
seguinte. Tornaram-se, então, textos referenciais para a Arqueologia de Gênero,
seguidos por muitos outros.
Em geral, as
contribuições, atividades, percepções e perspectivas das mulheres são
minimizadas, estereotipadas, ou simplesmente ignoradas... Os homens são
retratados como sendo mais ativos, os mais importantes e os mais responsáveis
pela proteção e manutenção do grupo que as mulheres. As mulheres são
tipicamente descritas como indivíduos confinados a esfera doméstica onde suas
atividades e padrões de mobilidade estão restritos aos seus papéis como mães e
esposas. A pesquisa arqueológica em seu conteúdo e modo de interpretação tem
sido androcêntrica. Felizmente, uma ampla literatura e pesquisa sobre gênero
estão agora disponíveis não só para enfraquecer esse tipo de tendência, mas
também para servir especialmente como base para o desenvolvimento de abordagens
explicitamente arqueológicas sobre gênero (CONKEY, SPECTOR, 1998, p.23).
É
importante destacar que, dentro do campo de estudo da Arqueologia de Gênero,
existe uma distinção clara entre sexo e gênero. O Sexo, feminino ou masculino,
é biologicamente determinado, e representado pelos remanescentes ósseos
humanos. Já o Gênero, homem ou mulher, é visto como uma construção social, pois
envolve o desempenho de papéis sociais na maioria das vezes relacionado ao sexo
dos indivíduos no sistema social.
Os
estudos de gênero procuram evitar as vinculações unilaterais entre um
determinado vestígio cultural e um único gênero. Interpretações dessa natureza
podem ser observadas ao longo de toda a história da arqueologia, como, por
exemplo, a recorrente associação entre pontas de projétil e homens, bem como
entre cerâmica e mulheres.
Há mais de
três décadas, antropólogas têm documentado a enorme variabilidade nos papéis
desempenhados pela mulher... elas têm sido mais ativas que passivas, mais
móveis que sedentárias e mais fortes que simplesmente frágeis (WYLIE, 1998, p.74).
Gênero e Diferenciação Social
Acreditamos
que os estudos de gênero são os mais adequados para compreendermos a questão da
diferenciação social na pré-história, especialmente através dos remanescentes
ósseos humanos. Não só as análises biológicas contribuem efetivamente para
isto, mas também o contexto arqueológico dos rituais funerários.
Durante a análise biológica sexualmente
diferenciada e estatisticamente avaliada, muitas variáveis e subvariáveis devem
ser consideradas. A paleopatologia avalia a ocorrência de artrite ou
degeneração das superfícies articulares, robustez óssea, fraturas e doenças que
podem conduzir a informações sobre carga de trabalho, violência inter pessoal,
acidentes, estilo de vida e atividades desenvolvidas pelos indivíduos.
A nutrição corresponde à qualidade e
quantidade dos alimentos consumidos pelo indivíduo ao longo de sua vida, e pode
ser arqueologicamente estudada através da identificação de vários tipos de
problemas associados às deficiências de vitaminas e minerais. Tais ocorrências
podem ser determinadas através de análises químicas e biológicas dos ossos
humanos, dentre elas a anemia, associada à baixa quantidade de ferro e zinco e
presença de criba orbitalia[1]
nos ossos; a osteoporose identificada através do baixo índice de cálcio e
aspecto poroso e frágil dos ossos; as cáries que correspondem a orifícios nos
dentes causados pelo consumo de alimentos com alto teor de carboidratos; a
baixa estatura, detectada através das medidas dos ossos longos cujos índices
são comparados com tabelas padronizadas; e o dimorfismo sexual acentuado,
observado através da análise dos esqueletos e elementos diagnósticos de adultos
masculinos e femininos (cf. COHEN, BENNETT, 1998).
Episódios
de estresse ou distúrbios no crescimento por deficiência alimentar durante a
infância também podem auxiliar a análise de gênero na pré-história. Estes
episódios podem ser observados na vida adulta por meio de duas maneiras: (1)
linhas de Harris (Harris lines), que
podem ser observadas nos ossos longos, especialmente nas tíbias, através de
raios-X e apresentam-se como linhas delgadas e perpendiculares. Segundo
especialistas, indicam mais a capacidade que o indivíduo teve de se recuperar
do estresse que a freqüência do estresse por si só (COHEN & ARMELAGOS,
1984), e (2) linhas macroscópicas ou microscópicas de formação irregular do
esmalte dos dentes (hipoplasia e Wilson
bands). Ambos ocorrem em idades e posições específicas, tanto nos ossos
quanto nos dentes e o padrão dessas linhas, uma vez identificado, pode
determinar a idade em que o estresse ocorreu e a sua duração.
Segundo CASSIDY (1984) e GOODMAN et alii
(1984) é possível distinguir a regularidade do estresse em indivíduos adultos,
e sendo os mesmos sexualmente identificados, torna-se possível estabelecer
padrões diferenciais para gênero. Tais autores sugerem ainda que a mulher seja
mais resistente que o homem na superação desses distúrbios no crescimento e que
as linhas de Harris sejam mais comuns entre populações caçadoras-coletoras
enquanto que a hipoplasia e as Wilson bands sejam quase que universalmente mais
comuns entre populações agricultoras.
As
análises biológicas e químicas dos ossos humanos, como as acima referidas,
podem contribuir efetivamente para a elucidação das questões sobre gênero. As
modificações do esqueleto sejam elas macroscópicas ou microscópicas,
relacionadas à carga de trabalho, nutrição, às doenças e aos distúrbios no
crescimento sexualmente identificadas, conduzem inexoravelmente a um
refinamento dos nossos conhecimentos sobre diferenciação social e status na
pré-história.
Contudo,
também devemos considerar o contexto dos rituais funerários como fundamental
para o estudo de gênero na pré-história, pois é a partir dele que todas as
análises podem ser viabilizadas. Ademais, a identidade pessoal e social
(segundo o sexo, a idade, a atribuição de nome, o status, o papel cerimonial)
também é comunicada através de uma linguagem simbólica consubstanciada no uso
de objetos durante o ritual. Os significados desses símbolos nem sempre estão
explícitos no registro arqueológico e sua interpretação é uma tarefa difícil.
O rito é
desempenhado para marcar situações de liminaridade - passagem de um estágio do
ciclo vital a outro (...). A teatralização intrínseca do rito exige a
personificação dos seus participantes. Essa individualização se expressa no
corpo do ator social e nos objetos que o acompanham (...). A relação entre
identidade - pessoal e étnica - e a categorização do corpo, distingue não só o
indivíduo dentro de um grupo, como o próprio grupo frente aos demais (...). A
personificação do corpo acompanha o indivíduo em todo o seu ciclo de vida,
sobretudo nos ritos de passagem (RIBEIRO, 1987b, p.23).
Entre
os Kayapó e os Suyá, do tronco lingüístico Jê, por exemplo, a personificação do
corpo - ou o significado simbólico dos adornos corporais e mesmo dos órgãos que
compõe o corpo - foram estudados. Assim, a categorização do corpo obedece a
regras de codificação que determinam o comportamento de seus portadores, de
acordo com seus papéis sociais e rituais. Essas informações codificadas passam,
então, de geração a geração, contribuindo para a manutenção e aprimoramento da
sociedade. Outro exemplo é o dos Xavante, entre os quais a pintura em vermelho
representa a procriação e o órgão sexual masculino (RIBEIRO, op.cit., p. 24).
Percebe-se,
então, que a cultura material utiliza o corpo do indivíduo como meio de
representar os símbolos que permeiam a estrutura social do grupo.
O sistema de
significados e valores, que comunica a identidade pessoal e social do
indivíduo, transforma o próprio corpo num palco simbólico sobre o qual o drama
da socialização é encenado (TURNER, 1980, p.112-5 apud RIBEIRO, op.cit.,
p.25).
Por
outro lado, os rituais funerais constituem uma verdadeira renovação da
sociedade, pois são ocasiões em que se reforçam solenemente as relações entre
os membros da comunidade, se reiteram através de representações simbólicas os
aspectos primordiais que justificam a existência do grupo, a fim de mantê-los e
reforçá-los. Assim, a morte de um indivíduo, converte-se numa espécie de
pretexto para que a sociedade reforce seus valores e demonstre seu vigor, a fim
de que suas tradições possam se perpetuar (cf. THOMAS, 1983, p.520). "O
ritual funerário é uma maneira de reforçar a cultura e contribuir para a
solidariedade do grupo" (ORME, 1981, p.226).
Os
arqueólogos têm se detido no estudo da natureza do ritual mortuário como uma
reflexão do status social do morto,
tentando determinar o grau de “hierarquia” da sociedade em questão. Em
complementação ao proposto por BINFORD (1972) sobre a possível ocorrência de um
maior número de manifestações ritualísticas, de acordo com o grau de
importância do morto, TAINTER (1974, p.1-5) tem demonstrado uma correlação
entre o grau de rompimento que uma morte provoca na comunidade e a quantidade
de energia despendida no ritual funerário, medida pelos recursos do morto, pela
ocorrência de acompanhamento funerário e pela maneira de disposição do corpo.
“Os rituais funerários variam amplamente entre diferentes pessoas e a maioria
das variações dependem do sexo, da idade e da posição social do morto” (VAN
GENNEP, 1996, p.146).
O ritual
mortuário serve para enfatizar a coesão e a continuidade da ordem social, para
reafirmar as relações entre a vida e resolver a dissonância criada pela perda
imprevisível de um membro da comunidade. A formalidade e a natureza abstrata do
ritual, seu caráter essencialmente simbolizaste, atuam para legitimar e
reforçar a diferenciação do sistema social existente, quando articulados
através da idade, do sexo, da realização pessoal e vinculações intragrupal. As
expressões materiais do comportamento ritual, a partir do uso de ornamentos e
ocre para a exibição ritual do crânio, podem ser de particular importância na
legitimação dos sistemas no qual o poder é atribuído ou negado ao nascimento.
Parece razoável, então, assumir que o grau pelo qual a sociedade demonstra o
comportamento ritual pode ser correlacionado com o grau de sua hierarquia
institucionalizada (BLOCH, 1977 apud JACOBSEN, CULLEN, op. cit., p. 95).
Dentre
as inúmeras variáveis que caracterizam o ritual funerário, algumas delas devem
ser mais intrinsecamente analisadas. O número, o sexo e a idade dos indivíduos
encontrados na estrutura funerária influenciaram enormemente a interpretação no
que diz respeito ao entendimento das escolhas diferenciadas por ocasião da
morte de um indivíduo. Além destas, também os acompanhamentos funerários
desempenharam um papel importante na estruturação do quadro interpretativo de
práticas mortuárias do estudo em questão.
Os
acompanhamentos funerários são, em muitos casos, a expressão de uma parte da
“personalidade social de um indivíduo” (UCKO, 1969, p.265). Este é o caso dos
Lugbara de Uganda, na África, que colocam junto ao indivíduo do sexo masculino
morto sua aljava, símbolo das atividades de caçador e de guerreiro exercidas
por ele quando vivo, sua cabaça, símbolo de status
por ter bebido com um homem mais velho, seu banco, representando sua velhice,
entre outros objetos. As mulheres podem ser enterradas com suas contas,
representando seu status enquanto
jovem, com suas pedras de fazer fogo, simbolizando seu status enquanto esposa e com suas pedras de amolar, representando
seu status enquanto uma mãe
(MIDDLETON, 1960 apud UCKO, op.cit., p.265). Neste caso, a relação entre o
morto e os objetos a ele associados não se refere a uma crença de vida após a
morte, mas expressam o papel social exercido pelo indivíduo enquanto membro da
sociedade vivente.
Segundo
CUNHA (1978, p.131), na maioria das tribos Jê a propriedade de um indivíduo era
destruída ou enterrada com o seu dono ou tomada por estranhos. Entre os Xavante
e os Kaingáng, por exemplo, os bens de um morto eram queimados com ele, os
Kaiapó enterravam-nos com seus proprietários, já entre os Krahó, somente os
objetos de uso cotidiano eram enterrados com o morto. No entanto, estes últimos
faziam uma distinção entre objetos pessoais (menos valiosos) e os de uso
cotidiano que eram enterrados com o morto ou destruídos por seus parentes (sua
esteira, por exemplo) e os mais valiosos que eram tomados por estranhos.
Tudo
concorre, parece-nos, para apontar novamente a absoluta estranheza que
caracteriza o morto. Ele se tornou “outro”, e seus bens, pelo menos o que
chamaríamos pessoais, adquirem juntamente com ele esse atributo de alteridade.
Daí a equivalência entre acompanharem o morto sendo enterrados com ele, serem
destruídos como ele o foi, ou pertencer doravante a estranhos já que estranhos
eles próprios se tornaram. A herança não poderia, portanto, concernir senão
bens que não fossem concebidos como parte da pessoa (CUNHA, op.cit.,
p.134).
[1] Criba
orbitalia aparece no esqueleto através de pequenos orifícios, especialmente no
crânio. A intensidade da anemia pode ser avaliada pela quantidade destas
perfurações.
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