GLÁUCIA MALERBA SENE
Instituto Brasileiro de Pesquisas Arqueológicas
Profa. Colaboradora do PPG em Arqueologia, Museu Nacional, UFRJ
PAULO SEDA
LEPAma – Lab. de Est. E Pesq. da América Antiga/NUCLEAS – Núcleo de Estudos das Américas, UERJ
Instituto Brasileiro de Pesquisas Arqueológicas
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Durante muito tempo, o modo de vida na pré-história
foi visto como uma grande igualdade. Mais que isso, mesmo que entre grupos
horticultores se admitissem diferenças hierárquicas, era um modo de vida onde o
indivíduo não encontrava lugar.
Para LIMA (2001), a grande razão disto residiria no fato de os modelos
utilizados pelos arqueólogos sustentarem-se, sobretudo, no evolucionismo
cultural da antropologia de meados do século XX, privilegiando modos de subsistência e adotando tipologias
evolutivas. O foco excessivo no econômico e a dominância de modelos
tecno-ambientais teriam trazido limitações conceituais, uma vez que o processo
de diferenciação social não é passivo e outros agentes de mudança precisariam
ser considerados.
Ainda segundo LIMA (2001) é, principalmente, nos anos 90 que este
panorama teria começado a mudar, com diversos estudos alterando substancialmente
a antiga perspectiva.
O que está em discussão e no centro das atenções, no
momento, não é a desigualdade propriamente - de vez que ela é considerada
inerente à natureza humana e reconhecida em todas as formas de organização
social (Flanagan, 1984:260) ao longo de dimensões como sexo, idade e
habilidades pessoais - mas sim a sua institucionalização. Ou seja, o surgimento
de hierarquias, agora ao longo de outras categorias, como parentesco e classe
(Price, 1995:130), marcando a diferenciação entre status adquirido e status
atribuído. A questão, portanto não é quando a desigualdade surgiu, já que ela
existiu sempre, não tendo havido um estado de igualdade utópica do qual os
indivíduos emergiram para posições diferenciadas. Mas sim quando ela foi intensificada,
formalizada, institucionalizada, vale dizer, quando as diferenças passaram a
ser herdadas e reproduzidas socialmente. Este é o ponto crítico da
diferenciação social e foi essa institucionalização que forneceu as bases para
o desenvolvimento de formas sociais e políticas mais complexas (LIMA, op.
cit., pág. 2).
Boa parte do
pensamento atual na arqueologia procura retirar o foco do sistema e focar o
indivíduo, como fundamental no processo de desigualdade: sem deixar de se
considerar aspectos econômicos, ambientais, tecnológicos, passa a ser
considerada capacidade dos indivíduos - pelo menos alguns - de implementar ou
iniciar mudanças, através de diferenciação de status, liderança, acumulo
de informações, etc.
Os
restos arqueológicos permitem construir um sistema de oposições (fogueiras com
restos alimentares, em contraposição a fogueiras sem restos alimentares;
cerâmica decorada, em contraposição a cerâmica simples, por exemplo), que não
tem, contudo, significados sociais absolutos. Assim, talvez a principal questão
com que a arqueologia se depare seja como ultrapassar as propriedades
perceptíveis dos objetos (ou restos) e identificar suas características
sociais. Como já observado, os restos arqueológicos são sempre residuais e
lacunares. Ocorre, porém, que esses restos são desigualmente lacunares,
devendo-se distingui-los em conjuntos fechados e abertos.
Persiste,
contudo, um certo “ranço” de que uma série arqueológica, mesmo que
representativa de uma cultura, não permitiria compreendê-la em termos de
processo, ou seja, as relações entre cultura material e processo social só
seriam inteligíveis com a ajuda de outras fontes. A arqueologia moderna, porém,
recusa à distinção entre elementos materiais e não materiais de uma cultura,
entendendo que as informações sociais estão presentes tanto nos objetos quanto
na linguagem.
Os limites práticos de nosso conhecimento do
passado não são inerentes à natureza da informação arqueológica. Tais limites
resultam de nossa ingenuidade metodológica e da ausência de princípios que
permitam avaliar, com relação aos vestígios arqueológicos, o caráter pertinente
de sugestões quanto ao processo e quanto a acontecimentos do passado
(BINFORD e BINFORD, 1968, 23).
Assim,
os limites da arqueologia resultariam dos métodos empregados, não das
características de seus materiais. Para ultrapassar essas barreiras, é
necessário questionar conceitos já estabelecidos e desenvolver novas
estratégias. Em síntese, o que as abordagens atuais preconizam é que o conjunto
de estruturas e objetos que a escavação revela deve ser visto como conjunto de
informações com propriedades definidas, que precisam ser consideradas
espacialmente e temporalmente, através de feedbacks,
associando as relações verificadas às características dos materiais e buscando
para cada relação à sua função. Utilizando ainda informações externas à
escavação, torna-se possível reconstituir o processo e os modos culturais da
sociedade em estudo. A isto, acrescenta-se, mais modernamente, o papel do
indivíduo nestas sociedades.
Neste
sentido, os estudos de gênero têm, sem dúvida, um lugar de destaque.
De
forma bastante interessante, podemos identificar como um dos primeiros estudos
de arqueologia de gênero, embora este termo não fosse empregado, a
interpretação de LAMING-EMPERAIRE (1962) e LERROI-GOURHAN (1965) para Arte
Franco-Cantábrica, em que vêm nos painéis rupestres das diversas grutas
estudadas uma dualidade sexual (“Dualismo Universal”), onde as representações
de bovídeos (que ocupam posição central) seriam símbolos femininos e as
representações de cavalos (posição periférica) símbolos masculinos.[1]
Contudo,
evidentemente, são os sepultamentos e os rituais funerários que podem fornecer
mais subsídios, dados e até mesmo certezas para os estudos de gênero na
pré-história. São, sobretudo, eles (acompanhados de perto pela arte rupestre)
que permitem fazer uma ponte mais curta entre os restos e suas características
sociais, entre cultura material e não material: eles nos falam do pensamento,
das crenças, das identidades, dos status, dos comportamentos e do papel
social dos indivíduos, enquanto membros de um grupo, enquanto crianças, jovens,
adultos ou velhos, enquanto homens e mulheres.
Desta
forma, a valorização do indivíduo e, por extensão, dos estudos de gênero na
arqueologia, trazem não só novos subsídios, como também contribuem para tornar
mais humanas as sociedades que estudamos.
[1]
LAMING-EMPERAIRE, op. cit., pág. 201 admite a possibilidade da oposição
bovídeo-cavalo representar não a expressão de uma dualidade de sistema de
mundo, mas sim de um sistema social.
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