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terça-feira, 17 de abril de 2012

TEORIA ARQUEOLÓGICA, GÊNERO E DIFERENCIAÇÃO SOCIAL NA PRÉ-HISTÓRIA BRASILEIRA: A TRADIÇÃO UNA - 2. Arqueologia de Gênero

GLÁUCIA MALERBA SENE
Instituto Brasileiro de Pesquisas Arqueológicas
Profa. Colaboradora do PPG em Arqueologia, Museu Nacional, UFRJ
PAULO SEDA
LEPAma – Lab. de Est. E Pesq. da América Antiga/NUCLEAS – Núcleo de Estudos das Américas, UERJ
Instituto Brasileiro de Pesquisas Arqueológicas


2. Arqueologia de Gênero



Algumas teorias assinalam que tanto o sexo quanto o gênero não existem fora da cultura...e que ademais eles só são capazes de existir através de sua constante repetição em atos e símbolos. O gênero é, então, não um fato ou uma essência, mas um conjunto de atos que produz o efeito ou a aparência de uma substância coerente. O gênero não é incorporado, mas repetidamente representado (ELLER, 2000, p.75).

            A pioneira a realizar trabalhos sobre gênero, especificamente sobre importância da mulher na pré-história, foi Marija Gimbutas cuja pesquisa na região dos Balcãs a levou a criar a idéia de uma Europa Antiga tendo como base uma figura feminina. Mesmo tendo tecido considerações de uma maneira unilateral e sendo atualmente criticada, ocupa um lugar importante na vanguarda desses estudos.

            Posteriormente, na década de 80, alguns artigos foram publicados sobre a análise de gênero na pré-história como os de Margareth Conkey e Janet Spector, mas as questões por elas levantadas só foram amplamente valorizadas e discutidas na década seguinte. Tornaram-se, então, textos referenciais para a Arqueologia de Gênero, seguidos por muitos outros.

Em geral, as contribuições, atividades, percepções e perspectivas das mulheres são minimizadas, estereotipadas, ou simplesmente ignoradas... Os homens são retratados como sendo mais ativos, os mais importantes e os mais responsáveis pela proteção e manutenção do grupo que as mulheres. As mulheres são tipicamente descritas como indivíduos confinados a esfera doméstica onde suas atividades e padrões de mobilidade estão restritos aos seus papéis como mães e esposas. A pesquisa arqueológica em seu conteúdo e modo de interpretação tem sido androcêntrica. Felizmente, uma ampla literatura e pesquisa sobre gênero estão agora disponíveis não só para enfraquecer esse tipo de tendência, mas também para servir especialmente como base para o desenvolvimento de abordagens explicitamente arqueológicas sobre gênero (CONKEY, SPECTOR, 1998, p.23).
            É importante destacar que, dentro do campo de estudo da Arqueologia de Gênero, existe uma distinção clara entre sexo e gênero. O Sexo, feminino ou masculino, é biologicamente determinado, e representado pelos remanescentes ósseos humanos. Já o Gênero, homem ou mulher, é visto como uma construção social, pois envolve o desempenho de papéis sociais na maioria das vezes relacionado ao sexo dos indivíduos no sistema social.
            Os estudos de gênero procuram evitar as vinculações unilaterais entre um determinado vestígio cultural e um único gênero. Interpretações dessa natureza podem ser observadas ao longo de toda a história da arqueologia, como, por exemplo, a recorrente associação entre pontas de projétil e homens, bem como entre cerâmica e mulheres.
Há mais de três décadas, antropólogas têm documentado a enorme variabilidade nos papéis desempenhados pela mulher... elas têm sido mais ativas que passivas, mais móveis que sedentárias e mais fortes que simplesmente frágeis (WYLIE, 1998, p.74).

Gênero e Diferenciação Social

            Acreditamos que os estudos de gênero são os mais adequados para compreendermos a questão da diferenciação social na pré-história, especialmente através dos remanescentes ósseos humanos. Não só as análises biológicas contribuem efetivamente para isto, mas também o contexto arqueológico dos rituais funerários.
             Durante a análise biológica sexualmente diferenciada e estatisticamente avaliada, muitas variáveis e subvariáveis devem ser consideradas. A paleopatologia avalia a ocorrência de artrite ou degeneração das superfícies articulares, robustez óssea, fraturas e doenças que podem conduzir a informações sobre carga de trabalho, violência inter pessoal, acidentes, estilo de vida e atividades desenvolvidas pelos indivíduos.
             A nutrição corresponde à qualidade e quantidade dos alimentos consumidos pelo indivíduo ao longo de sua vida, e pode ser arqueologicamente estudada através da identificação de vários tipos de problemas associados às deficiências de vitaminas e minerais. Tais ocorrências podem ser determinadas através de análises químicas e biológicas dos ossos humanos, dentre elas a anemia, associada à baixa quantidade de ferro e zinco e presença de criba orbitalia[1] nos ossos; a osteoporose identificada através do baixo índice de cálcio e aspecto poroso e frágil dos ossos; as cáries que correspondem a orifícios nos dentes causados pelo consumo de alimentos com alto teor de carboidratos; a baixa estatura, detectada através das medidas dos ossos longos cujos índices são comparados com tabelas padronizadas; e o dimorfismo sexual acentuado, observado através da análise dos esqueletos e elementos diagnósticos de adultos masculinos e femininos (cf. COHEN, BENNETT, 1998).
            Episódios de estresse ou distúrbios no crescimento por deficiência alimentar durante a infância também podem auxiliar a análise de gênero na pré-história. Estes episódios podem ser observados na vida adulta por meio de duas maneiras: (1) linhas de Harris (Harris lines), que podem ser observadas nos ossos longos, especialmente nas tíbias, através de raios-X e apresentam-se como linhas delgadas e perpendiculares. Segundo especialistas, indicam mais a capacidade que o indivíduo teve de se recuperar do estresse que a freqüência do estresse por si só (COHEN & ARMELAGOS, 1984), e (2) linhas macroscópicas ou microscópicas de formação irregular do esmalte dos dentes (hipoplasia e Wilson bands). Ambos ocorrem em idades e posições específicas, tanto nos ossos quanto nos dentes e o padrão dessas linhas, uma vez identificado, pode determinar a idade em que o estresse ocorreu e a sua duração.
 Segundo CASSIDY (1984) e GOODMAN et alii (1984) é possível distinguir a regularidade do estresse em indivíduos adultos, e sendo os mesmos sexualmente identificados, torna-se possível estabelecer padrões diferenciais para gênero. Tais autores sugerem ainda que a mulher seja mais resistente que o homem na superação desses distúrbios no crescimento e que as linhas de Harris sejam mais comuns entre populações caçadoras-coletoras enquanto que a hipoplasia e as Wilson bands sejam quase que universalmente mais comuns entre populações agricultoras.
            As análises biológicas e químicas dos ossos humanos, como as acima referidas, podem contribuir efetivamente para a elucidação das questões sobre gênero. As modificações do esqueleto sejam elas macroscópicas ou microscópicas, relacionadas à carga de trabalho, nutrição, às doenças e aos distúrbios no crescimento sexualmente identificadas, conduzem inexoravelmente a um refinamento dos nossos conhecimentos sobre diferenciação social e status na pré-história.
            Contudo, também devemos considerar o contexto dos rituais funerários como fundamental para o estudo de gênero na pré-história, pois é a partir dele que todas as análises podem ser viabilizadas. Ademais, a identidade pessoal e social (segundo o sexo, a idade, a atribuição de nome, o status, o papel cerimonial) também é comunicada através de uma linguagem simbólica consubstanciada no uso de objetos durante o ritual. Os significados desses símbolos nem sempre estão explícitos no registro arqueológico e sua interpretação é uma tarefa difícil.

O rito é desempenhado para marcar situações de liminaridade - passagem de um estágio do ciclo vital a outro (...). A teatralização intrínseca do rito exige a personificação dos seus participantes. Essa individualização se expressa no corpo do ator social e nos objetos que o acompanham (...). A relação entre identidade - pessoal e étnica - e a categorização do corpo, distingue não só o indivíduo dentro de um grupo, como o próprio grupo frente aos demais (...). A personificação do corpo acompanha o indivíduo em todo o seu ciclo de vida, sobretudo nos ritos de passagem (RIBEIRO, 1987b, p.23).

            Entre os Kayapó e os Suyá, do tronco lingüístico Jê, por exemplo, a personificação do corpo - ou o significado simbólico dos adornos corporais e mesmo dos órgãos que compõe o corpo - foram estudados. Assim, a categorização do corpo obedece a regras de codificação que determinam o comportamento de seus portadores, de acordo com seus papéis sociais e rituais. Essas informações codificadas passam, então, de geração a geração, contribuindo para a manutenção e aprimoramento da sociedade. Outro exemplo é o dos Xavante, entre os quais a pintura em vermelho representa a procriação e o órgão sexual masculino (RIBEIRO, op.cit., p. 24).
            Percebe-se, então, que a cultura material utiliza o corpo do indivíduo como meio de representar os símbolos que permeiam a estrutura social do grupo.

O sistema de significados e valores, que comunica a identidade pessoal e social do indivíduo, transforma o próprio corpo num palco simbólico sobre o qual o drama da socialização é encenado (TURNER, 1980, p.112-5 apud RIBEIRO, op.cit., p.25).

            Por outro lado, os rituais funerais constituem uma verdadeira renovação da sociedade, pois são ocasiões em que se reforçam solenemente as relações entre os membros da comunidade, se reiteram através de representações simbólicas os aspectos primordiais que justificam a existência do grupo, a fim de mantê-los e reforçá-los. Assim, a morte de um indivíduo, converte-se numa espécie de pretexto para que a sociedade reforce seus valores e demonstre seu vigor, a fim de que suas tradições possam se perpetuar (cf. THOMAS, 1983, p.520). "O ritual funerário é uma maneira de reforçar a cultura e contribuir para a solidariedade do grupo" (ORME, 1981, p.226).
            Os arqueólogos têm se detido no estudo da natureza do ritual mortuário como uma reflexão do status social do morto, tentando determinar o grau de “hierarquia” da sociedade em questão. Em complementação ao proposto por BINFORD (1972) sobre a possível ocorrência de um maior número de manifestações ritualísticas, de acordo com o grau de importância do morto, TAINTER (1974, p.1-5) tem demonstrado uma correlação entre o grau de rompimento que uma morte provoca na comunidade e a quantidade de energia despendida no ritual funerário, medida pelos recursos do morto, pela ocorrência de acompanhamento funerário e pela maneira de disposição do corpo. “Os rituais funerários variam amplamente entre diferentes pessoas e a maioria das variações dependem do sexo, da idade e da posição social do morto” (VAN GENNEP, 1996, p.146).

O ritual mortuário serve para enfatizar a coesão e a continuidade da ordem social, para reafirmar as relações entre a vida e resolver a dissonância criada pela perda imprevisível de um membro da comunidade. A formalidade e a natureza abstrata do ritual, seu caráter essencialmente simbolizaste, atuam para legitimar e reforçar a diferenciação do sistema social existente, quando articulados através da idade, do sexo, da realização pessoal e vinculações intragrupal. As expressões materiais do comportamento ritual, a partir do uso de ornamentos e ocre para a exibição ritual do crânio, podem ser de particular importância na legitimação dos sistemas no qual o poder é atribuído ou negado ao nascimento. Parece razoável, então, assumir que o grau pelo qual a sociedade demonstra o comportamento ritual pode ser correlacionado com o grau de sua hierarquia institucionalizada (BLOCH, 1977 apud JACOBSEN, CULLEN, op. cit., p. 95).

            Dentre as inúmeras variáveis que caracterizam o ritual funerário, algumas delas devem ser mais intrinsecamente analisadas. O número, o sexo e a idade dos indivíduos encontrados na estrutura funerária influenciaram enormemente a interpretação no que diz respeito ao entendimento das escolhas diferenciadas por ocasião da morte de um indivíduo. Além destas, também os acompanhamentos funerários desempenharam um papel importante na estruturação do quadro interpretativo de práticas mortuárias do estudo em questão.
            Os acompanhamentos funerários são, em muitos casos, a expressão de uma parte da “personalidade social de um indivíduo” (UCKO, 1969, p.265). Este é o caso dos Lugbara de Uganda, na África, que colocam junto ao indivíduo do sexo masculino morto sua aljava, símbolo das atividades de caçador e de guerreiro exercidas por ele quando vivo, sua cabaça, símbolo de status por ter bebido com um homem mais velho, seu banco, representando sua velhice, entre outros objetos. As mulheres podem ser enterradas com suas contas, representando seu status enquanto jovem, com suas pedras de fazer fogo, simbolizando seu status enquanto esposa e com suas pedras de amolar, representando seu status enquanto uma mãe (MIDDLETON, 1960 apud UCKO, op.cit., p.265). Neste caso, a relação entre o morto e os objetos a ele associados não se refere a uma crença de vida após a morte, mas expressam o papel social exercido pelo indivíduo enquanto membro da sociedade vivente.
            Segundo CUNHA (1978, p.131), na maioria das tribos Jê a propriedade de um indivíduo era destruída ou enterrada com o seu dono ou tomada por estranhos. Entre os Xavante e os Kaingáng, por exemplo, os bens de um morto eram queimados com ele, os Kaiapó enterravam-nos com seus proprietários, já entre os Krahó, somente os objetos de uso cotidiano eram enterrados com o morto. No entanto, estes últimos faziam uma distinção entre objetos pessoais (menos valiosos) e os de uso cotidiano que eram enterrados com o morto ou destruídos por seus parentes (sua esteira, por exemplo) e os mais valiosos que eram tomados por estranhos.

Tudo concorre, parece-nos, para apontar novamente a absoluta estranheza que caracteriza o morto. Ele se tornou “outro”, e seus bens, pelo menos o que chamaríamos pessoais, adquirem juntamente com ele esse atributo de alteridade. Daí a equivalência entre acompanharem o morto sendo enterrados com ele, serem destruídos como ele o foi, ou pertencer doravante a estranhos já que estranhos eles próprios se tornaram. A herança não poderia, portanto, concernir senão bens que não fossem concebidos como parte da pessoa (CUNHA, op.cit., p.134).


[1] Criba orbitalia aparece no esqueleto através de pequenos orifícios, especialmente no crânio. A intensidade da anemia pode ser avaliada pela quantidade destas perfurações.

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