Sibeli A.Viana
PUC Goiás/Instituto Goiano de Pré-história e Antropologia
Pedro Paulo Guilhardi
Programa Erasmus Master
in Prehistory and Quaternary/
Muséum National
d´Histoire Naturelle – Paris
Publicado em:
Maracanan/Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Publicado em:
Maracanan/Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Programa de Pós-Graduação em História. - vol. VII -
n.7, 2011 -
Rio de Janeiro: UERJ, 1999 - Anual
Editora: Marilene Rosa Nogueira da
Silva
Responsável pelo número: Paulo Roberto Gomes
Seda
Instrumentos Líticos da Região
Central do Brasil
Apresentamos
ao longo do texto que o emprego da abordagem antropotécnica possibilita o
alcance, ainda que parcial, das relações entre sujeito e instrumentos e os
conhecimentos técnicos e saberes e fazeres que subjazem esta relação. Temos nos
utilizado desta abordagem para investigar as ferramentas produzidas em
contextos pretéritos, representados por sítios arqueológicos da região central
do Brasil pesquisados atualmente por nós[i]
e cujas datações regionais remontam até cerca de
10 mil anos atrás.
É
importante serem consideradas três principais restrições desta abordagem
antropotécnica, em se tratando de objetos (instrumentos) originários de
sociedades pretéritas: restrição do instrumento com a matéria a
ser transformada; da mão (do artesão ou do indivíduo que manipula o
objeto) com o instrumento; e a restrição do homem, do instrumento e da matéria
em uma relação de espacialidade e sinergia [ii].
Estas restrições, segundo o referido
autor, podem ser encaradas com base na abordagem tecnofuncional. Para tanto
identificamos, para o material arqueológico dos sítios da referida região e em
fase de pesquisa, duas categorias técnicas diretrizes da cadeia operatória de
produção de instrumentos líticos lascados: a debitagem e a confecção do
instrumento. A primeira está relacionada à produção da lasca suporte do futuro
instrumento, proveniente de debitagem algoritima, assim como Discóide e Piramidal; e a segunda trata
da modificação do suporte[iii].
Estes suportes apresentam indícios de predeterminação, dentre eles: o comprimento da lasca suporte,
determinado pela dimensão do núcleo, tratando-se, portanto, de lascas
ultrapassadas; a produção de lascas com dorso lateral e lascas com talão avantajado
e, em direção oposta, gumes naturalmente rasantes, utilizados brutos ou com
pequenos retoques. Tais características estão diretamente relacionadas à
produção do gume e da área preensiva das ferramentas, atuando no funcionamento
das ferramentas[iv].
A fase de confecção do instrumento é
caracterizada pela moldagem da peça e/ou produção do gume, por retoques
marginais, para o delineamento e formação de um ângulo de ataque de acordo com
a finalidade do instrumento. Estudos de Lepot[v]
chamam a atenção para as três partes integrantes de um instrumento artesanal: a
zona transformativa, sobre a qual a ação se realiza; a zona preensiva,
receptiva de energia; e outra receptora de energia, para instrumentos
com cabo.
Nos
sítios arqueológicos em questão não constatamos evidências de encabamento nos
instrumentos líticos lascados (zonas receptoras de energia). As marcas de
encabamento estão presentes somente nos instrumentos
polidos e provenientes dos contextos mais recentes, onde a cerâmica também se
faz presente. Nos instrumentos lascados, portanto, as zonas preensivas e
receptoras de energia se sobrepõem e, na sua maioria, são naturais, ou seja, as
lascas suportes já trazem zonas adequadas para tal finalidade, como é o caso da
presença dos dorsos laterais, da ultrapassagem ou dos talões espessos, são
zonas volumosas dos instrumentos que contribuem para uma preensão firme.
Cada
uma destas áreas corresponde ao que Boëda[vi]
denominou de Unidade Técnica Funcional
(UTF), que se apresenta como um micro-sistema técnico, cujo conjunto de
elementos está em sinergia funcional. As UTFs transformativas são constituídas
por uma dupla, denominada de plano de bico e plano de corte. A primeira é
relativa ao fio do instrumento, que entra em contato direto com a matéria e o
plano de corte é a zona que proporciona estabilidade e direção ao instrumento.
Dentre os instrumentos líticos
lascados dos sítios arqueológicos aqui em evidencia, constatamos que todas as
ferramentas são unifaciais, sendo que a face inferior plana é uma recorrência
necessária, tanto que, algumas vezes, observa-se uma regularização, posterior,
da porção plana, limitada às zonas transformativas, o que reforça a importância
deste elemento técnico no funcionamento desta UTF. A maioria das categorias[vii]
dos instrumentos apresenta pouca modificação da estrutura original do suporte,
os negativos de façonnage, entendidos
como moldagem do instrumento, em geral foram produzidos com o objetivo de
produzir as zonas transformativas, ou seja, criação dos planos de bico e de
corte ou zonas preensivas. Em certas ferramenta pode ocorrer diferentes
unidades transformativas num mesmo bordo, sendo que cada uma destas unidades
está relacionada a uma zona preensiva específica. Em alguns casos ocorrem sobreposições,
neste caso, uma zona transformativa é utilizada como área de preensão de outra
unidade transformativa.
As ferramentas aqui caracterizadas são consideradas como multifuncionais e correspondem à grande maioria presente nos sítios arqueológicos investigados por nós. Elas se relacionam ao que denominamos de objeto abstrato, conforme proposição de Simondon[viii]. Nessas ferramentas, cada unidade transformativa teria sido produzida e utilizada de forma independente e, assim como funciona um canivete suíço, mencionado anteriormente, estaríamos diante de uma matriz composta por diversos instrumentos. Mesmo no caso das ferramentas que apresentam somente uma unidade transformativa, o caráter sinérgico entre as diferentes partes da peça, não está presente. É preciso sempre uma análise global da estrutura da peça, pois não é a quantidade de zonas de gumes transformativos que determina a integração da estrutura da peça.
As ferramentas aqui caracterizadas são consideradas como multifuncionais e correspondem à grande maioria presente nos sítios arqueológicos investigados por nós. Elas se relacionam ao que denominamos de objeto abstrato, conforme proposição de Simondon[viii]. Nessas ferramentas, cada unidade transformativa teria sido produzida e utilizada de forma independente e, assim como funciona um canivete suíço, mencionado anteriormente, estaríamos diante de uma matriz composta por diversos instrumentos. Mesmo no caso das ferramentas que apresentam somente uma unidade transformativa, o caráter sinérgico entre as diferentes partes da peça, não está presente. É preciso sempre uma análise global da estrutura da peça, pois não é a quantidade de zonas de gumes transformativos que determina a integração da estrutura da peça.
Situação
diferenciada ocorre entre certos instrumentos, como é o caso das pontas de projétil.
Nas pontas de flechas todas as suas partes, inclusive a haste e os elementos
que a acompanham, como as penas, estão em sinergia completa e atuam diretamente
na função e no seu funcionamento. A simetria e equilíbrio que formam e
delineiam os bordos, a extremidade pontiaguda, os pedúnculos, assim como o
volume e a forma do instrumento, estão totalmente integrados, de forma que um
gesto mal aplicado num bordo, ou uma quebra na ponta, pode desestruturar a
aerodinâmica e desabilitar a função original do objeto. Neste caso, estamos
tratando de uma matriz na qual todas as suas partes estão integradas sendo,
portanto, um instrumento concreto ,
como definido por Simondon[i].
Estes instrumentos eventualmente se fazem presentes nos sítios da região
central do Brasil e ainda não foram encontrados nos sítios arqueológicos
pesquisados por nós, mas há registro em contextos regionais, como em
Serranópolis[ii].
Nos sítios arqueológicos mais
antigos, de cerca de 10.000 anos é recorrente a presença de ferramentas de
estrutura plano convexa, tradicionalmente denominada de lesmas[iii] e encontradas em sítios específicos de diversas
regiões dos estados de Goiás[iv],
de Mato Grosso[v],
de São Paulo[vi],
de Minas Gerais[vii],
assim como Mato Grosso do Sul, Bahia, Piauí e Pernambuco[viii].
Estudos sobre tais ferramentas encontradas em sítios da região central do
Brasil[ix],
realizados a partir da abordagem tecnofuncional, constatam expressiva
variabilidade tecnológica de produção e de esquemas de funcionamento, o que as
caracteriza em ferramentas cuja matriz é composta por vários instrumentos
específicos, ou seja, trata-se de um objeto multifuncional.
Todavia, a recorrência de certos
elementos técnicos presentes nestas peças, levam a pensar que tais ferramentas
estivessem num processo concretização[x]. Dentre
os elementos técnicos recorrentes estão: estrutura plana – garantida pelas
próprias faces naturais das lascas-suportes; convexidade da face superior –
obtida tanto por negativos de façonnage
invasivos como pelo “aproveitamento” de superfícies de seixos naturalmente
convexos; presença de uma UTF transformativa em uma das extremidades, com
delineamento de gume arredondado.
O desaparecimento destas peças
unifaciais (lesmas) na região central
do Brasil é cronologicamente datado em cerca de 6.500 antes do presente para a
região de Serranópolis e, em período mais tardio, cerca de 4.000 antes do
presente, na região de Caiapônia. As hipóteses explicativas para essa “ruptura” tecnológica se embasam em
duas proposições: explicação ambiental – associa a mudança cultural a uma
modificação climática – já que a data deste período corresponderia a um
aquecimento climático no ambiente[xi].
Uma das criticas desta hipótese se pauta no fato dos dados serem muito amplos,
não contemplarem as especificidades regionais. A segunda hipótese considera a
possibilidade de substituição de populações, que se sustenta nos dados da
antropologia física obtidos por Neves e equipe para a região de Minas Gerais[xii];
no entanto, o numero de crânios antigos é pequena, o que torna esta hipótese frágil[xiii].
Estamos de acordo com
Lourdeau[xiv]
acerca das incertezas sobre o problema do desaparecimento das lesmas e, que o caminho para tal
investigação deve ser ampliado, já que as hipóteses até agora apresentadas
baseiam-se em fatores externos. Consideramos que a expansão espacial dos
estudos tecnológicos fundamentados na abordagem antropotécnica possa
representar novas perspectivas para a ampliação desta questão, assim como para
estreitar estudos sobre as relações entre homens e mulheres e seu instrumental
lítico.
[ii] P.I. SCHMITZ et al. “Arqueologia
nos cerrados do Brasil Central. Serranópolis I”. Pesquisas. São
Leopoldo: IAP, n.44. 1989; P.I. SCHMITZ;
A.O. ROSA; A.L.V. BITENCOURT. Arqueologia nos Cerrados do Brasil Central. Pesquisas. Serranópolis III. São
Leopoldo. Unisinos, n. 60, 2004.
[iii]
Trata-se de
instrumentos “confeccionados sobre lascas grandes cujo volume é organizado com
retiradas unifaciais na periferia inteira da peça, sempre realizadas à custa da
face superior da lasca-suporte” (Antoine LOURDEAU. Le technocomplexe Itaparica –
definition techno-fonctionnellle des industries à pieces façonnées
unifacialement à une face place dans le centre et le nord-est du Brésil pendant
la transition Pleistocène-Holocène et l’Holocène ancient. Tese de Doutorado
apresentada à Université Paris Ouest Nanterre La Défense. 2010. p. 686).
[iv]
P.I. SCHMITZ et al. Caiapônia - Arqueologia nos cerrados do Brasil Central. São Leopoldo. Ed.
Unisinos. 1986.
[v] Embora o sítio arqueológico Santa
Elina apresente uma das sequências mais antigas de ocupação pretérita no
Brasil, não há evidências destes instrumentos em seu contexto (Águeda
VILHENA VIALOU; Denis VIALOU. “Les premiers peuplements prehistoriques
du Mato Grosso”. Bulletin de la Societé Préhistorique
Française. 91(4-5): 257-63, 1994.)
[vi] Águeda VILHENA VIALOU. “Tecnologia Lítica no Planalto Brasileiro: Persistência ou Mudança”. Revista de Arqueologia, v.22, n.2,
(Ago-Dez.2009), pp. 35- 53, 2009.
[vii] André PROUS. “As indústrias
líticas e cerâmicas no Estado de Minas Gerais: dificuldades de interpretação”. Arquivos do Museu de História Natural – UFMG,
8/9, pp. 55-59, 1983/1984.
[viii] Antoine LOURDEAU. Op. cit.
[ix] Paulo Jobim Campos MELLO. Op.
cit.; Emilio
FOGAÇA; Antoine LOURDEAU. “Uma abordagem tecnofuncional
e evolutiva dos instrumentos plano-convexos (lesmas) da transição Pleistoceno /
Holoceno no Brasil Central”. Fumdhamentos.
São Raimundo Nonato v. 7, pp. 260-347, 2006. Sibeli A.
VIANA. “Instruments hors de leurs contextes de production – instruments lithiques plan-convexes mis
au jour dans des sites archéologiques litho-céramiques de l’État du Mato Grosso
– Brésil”. Revista de Arqueologia AmericanaI, n. 26, pp. 291-329, 2008.
[x] BOEDA et al. Evolution
technologique et territoire dans la prehistoire bresilienne: comportements techno-economiques des societes prehistoriques des
plateaux central etmeridional du Bresil. Projeto apresentado à CAPES. 2005; Paulo Jobim Campos
MELLO. Op. cit.; Emilio FOGAÇA; Antoine LOURDEAU. Op. cit.; Sibeli A. VIANA. Op. cit. 2008.
[xii] W
NEVES; M. HUBBE. “Luzia e a saga dos primeiros americanos”. Scientific
American Brasil, edição especial, n. 2, pp. 64-71, 2004
[xiii] Para mais
informações sobre esta questão, consultar: Paulo Jobim
Campos MELLO. Op. cit.; Antoine LOURDEAU. Op. cit. 2006; Emilio FOGAÇA; Antoine
LOURDEAU. Op. cit. e Antoine LOURDEAU. Op. cit. 2010.
[i] Sibeli A VIANA. Op. cit.;
Sibeli A VIANA. Análise
do sistema tecnológico das indústrias líticas pré-históricas recuperadas pelo
Projeto Alto-Araguaia. Relatório de Pesquisa, IGPA. PUC/Goiás, 2010.
[iii] Os suportes dos instrumentos dessa região também
provêm de fragmentos não lascados, que portam naturalmente as características
desejadas pelo artesão.
[iv] Sibeli A VIANA. Op. cit.
2005; Carolina
T BORGES. Oficina lítica de superfície GO-CP-17 (Palestina De
Goiás - GO). Atual análise, novas propostas, possíveis interpretações. Monografia de final de curso.
PUC-Goiás, IGPA. 2009; Patrícia F.P RODRIGUES. Caçador-Coletor: uma (re)análise do material lítico dos sítios arqueológicos
da Região de Palestina de Goiás/GO. Monografia de final de curso.
PUC-Goiás, IGPA. 2009; Pedro P GUILHARDI Sítios
lito-cerâmicos de Palestina de Goiás: uma
abordagem da tecnologia lítica. Monografia de final de curso. PUC-Goiás,
IGPA. 2009; Sibeli A VIANA. Op. cit. 2010.
[v] LEPOT, M. Approche techno-fonctionnelle de l'outillage lithique
moustérien: essai de
classification des parties actives en termes d'efficacité technique. Tese de
doutorado apresentada à Université Paris X - Nanterre. 1993.
[vi]
Eric BOËDA. “Determination des unités techno-fonctionnelles de pièces
bifaciales provenant de la Couche Acheuléenne C’3 Base du Site de Barbas I”. In: D. CLIQUET. Les industries à
outils bifaciaux du Paléolithique moyen d´Europe occiedentale. Actes
de la table-ronde internationale organisée à Caen (Basse-Normandie-France).
Liège: ERAUL 98. 2001, p.51-75.
[vii] Para caracterização específica das categorias dos instrumentos
destes sítios, consultar obras completas de Sibeli A VIANA. Op. cit. 2005; MELLO, Paulo Jobim Campos. Análise dos Sistemas de Produção e da Variabilidade
Tecnofuncional de Instrumentos Retocados: as indústrias líticas a céu aberto do
vale do rio Manso/MT. Tese de Doutorado. PUCRS.
Porto Alegre. 2005.;
Pedro P GUILHARDI. Op.cit.; Carolina T BORGES. Op. cit. e Sibeli A VIANA. Op.
cit. 2010.
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